O texto a seguir foi pensado inicialmente como um exemplo para uma produção textual que pedi aos meus alunos. A ideia era que eles escrevessem uma redação defendendo os livros e a leitura, porque estamos lendo Fahrenheit 451, livro distópico que retrata uma sociedade extremista que baniu os livros. Junto com a argumentação, eles deviam usar um livro de literatura para justificar algum dos argumentos. Fiz o exemplo para demonstrar como o exemplo podia ser incluído no texto, mas gostei tanto que decidi compartilhá-lo aqui também. :)
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Por veredas livremente literárias
(ou porque ler)
Contar histórias é uma atividade tão humana e tão antiga que remonta aos tempos anteriores ao registro escrito. Sabemos que nossos ancestrais contavam histórias, das quais temos registro até hoje, que buscavam explicar fenômenos do mundo. Com o avanço científico e tecnológico, muito daquilo que os mitos e lendas antigas tentavam esclarecer foi explicado de forma racional. No entanto, não perdemos o hábito, nem a necessidade, de ouvir e contar histórias.
Se a ficção não nos explica mais os fenômenos naturais, existem outras questões do mundo que só ela tem poder de ensinar. Os livros, repositório do conhecimento humano de séculos, nos apresentam a trajetória do pensar, como um compilado histórico das ideias que já foram adotadas pelos diferentes povos. Por meio deles, nos deparamos com temáticas atemporais, assuntos que sempre preocuparam a humanidade, como a morte e os sentimentos. Para além do que é racional, esses temas ainda hoje nos desacomodam, pairam sobre nós e precisam ser decifrados. No tecido de palavras das narrativas e poemas, encontramos matéria para resolver nossos medos e dúvidas inconscientes, nos deparamos com nossos sentimentos mais profundos. Prova disso é que autores tão antigos quando Homero ainda são lidos, apreciados, destrinchados. Mortos há séculos, continuam nos dizendo muito sobre quem somos nós, agora.
Muito mais do que resolver nossos próprios conflitos, a literatura nos permite olhar o outro, exercitar a empatia. Nos tempos de discurso de ódio e extremismo em que estamos, tal movimento é essencial. Tanto histórias atuais quanto antigas podem nos transportar para a visão de outros, mas, para ilustrar esse movimento, poucas obras são tão ricas quanto a de Guimarães Rosa, autor mineiro que soube como ninguém reinventar a linguagem. Em seu Grande sertão: veredas, o autor nos coloca na pele de Riobaldo, um ex-jagunço, que narra suas aventuras, seu amor reprimido por seu amigo Diadorim e sua relação com a espiritualidade. O leitor sente-se o próprio Riobaldo durante a leitura. E sente-se também gado manso do Sertão, Diadorim, Joca Ramiro e muitos outros. O livro tem o poder de nos dar a visão de terceiros sobre o mundo, de compreender que nossa percepção do mundo não é a mesma que a dos outros.
Os livros são a forma que encontramos de levar adiante nossas histórias. Pouca diferença faz se são feitos de papel, ou se podemos acessá-los em uma biblioteca digital. Sua matéria-prima real são as palavras e o sentimento humano. Eles são a ferramenta mais eficaz para termos conhecimento do mundo, assim como criticidade para entender as situações. Ensinam-nos a pensar de formas diferentes, mostram que o mundo nem sempre é perfeito, fazem sentir dores, amores e viver situações que nunca poderíamos experimentar na vida real. Com isso, instrumentalizam para encarar a realidade de forma crítica, questionando e pensando sobre os fatos do mundo.
É fato que o papel do livro enquanto construtor do ser humano e formador de seres pensantes incomoda aqueles que desejam que a população permaneça ignorante. Afinal, quem não tem conhecimento de si mesmo, do mundo, nem consegue ver uma situação de diferentes pontos de vista, pode ser facilmente manipulado a acreditar em toda a informação que recebe como verdade absoluta. Por isso, governos extremistas, ditadores e pessoas desejosas de poder caçam livros e leituras, assim como as outras possibilidades de estimular o pensamento. Em nossos tempos, de discursos de ódio numerosos e extremismos, os livros são mais necessários do que nunca. A leitura, nesse mundo que tanto busca nos direcionar, é um exercício que possibilita, mais do que o pensamento crítico, a liberdade maior de ser quem quisermos ser.